Rubrica da Biblioteca Escolar
José Saramago, prémio Camões em 1995 e prémio Nobel da Literatura em 1998, nasceu
a 16 de novembro de 1922.
A primeira vez que li Saramago, confesso que não adorei a sua escrita. Senti pouca
empatia pela sua linguagem discursiva complexa, por aquele conjunto de grafismo e pontuação,
que mo impediam de ler com a fluidez e velocidade a que estou acostumada.
Foi o encontro com As pequenas memórias, esse livro, aparentemente simples, que me
reencaminhou para a sua obra e me fez vencer os obstáculos de uma primeira e imatura
leitura.
Hoje, admiro-o e aprecio-o verdadeiramente.
Leio-o devagar, pausadamente, deixando-me entranhar a cada passo pela sua
grandiosidade como Homem, pelo valor profundíssimo do conteúdo da sua obra e pela
genialidade das suas construções simbólicas.
Conta-nos em As pequenas memórias ter nascido, na aldeia da Azinhaga, no concelho
da Golegã e, ainda não ter dois anos, quando veio viver para Lisboa, com os pais. Mas, tal como
como muitos jovens na época, filhos de pais migrantes, forçados pelas necessidades materiais,
voltava sempre à terra para as férias possíveis, com os avós, camponeses.
Desde as primeiras páginas do livro é manifesto o ser/escritor que é Saramago: o seu
misto de erudição e de ligação à terra e uma conceção do Homem como ser complexo, ao
mesmo tempo supremo e relativo, grande e pequeno. Na própria evocação dos lugares, está
sempre presente a procura permanente da relação entre o universal e o meramente temporal:
como o rio de que nos fala. O rio que é o seu rio está lá “desde a criação do mundo”.
Também a crítica social e a permanente observação do seu tempo são uma constante,
na sua reflexão esclarecida, irónica, muitas vezes impiedosa:
“A Comunidade Europeia pagou um prémio aos proprietários das terras (…) e hoje, em
lugar dos misteriosos (…) olivais do meu tempo (…) um interminável campo de milho híbrido (…)
cada maçaroca talvez com o mesmo número de bagos”.
Em Lisboa, a família compartilhou com outras famílias, em partes de casa, o local de
residência. E, todos os que são simultaneamente aficionados leitores e bons andarilhos, podem
peregrinar por alguns dos locais da Lisboa que ele relembra. Por exemplo, cruzando a Morais
Soares, há que subir a rua Heróis de Quionga – rua íngreme e extensa, relativamente estreita, onde coabitam edifícios modernos e antigos de traça modesta e familiar com muitas águas
furtadas.
Aproximando-nos do prédio descrito, conseguimos imaginá-lo, rapazinho, a sair de casa
a caminho da escola, modestamente vestido, de sacola ao ombro. Se insistirmos no olhar,
minutos passados, ele estará à janela, vendo cair a chuva, no famoso dia em que decidiu não ir
à escola, apesar da zanga da mãe: gostando de “olhar as imperfeições de fabrico do vidro, as
imagens deformadas do que estava para além dele”. Vivia já ali, naquela janela, a sua
capacidade de “ver para além de”, de extrair cirurgicamente a essência dos seres.
Enveredando pela avenida General Roçadas e calcorreando Sapadores até ao Largo da
Graça, já não vislumbraremos quaisquer indícios do Salão Oriente ou do Royal Cine que ele
frequentava ou quase: “ Mentiras mais desculpáveis foram as de ter inventado enredos de
filmes que nunca tinha visto (…) ver os cartazes expostos (…) e a partir dessas poucas imagens
(…) armava eu ali mesmo uma completa história(…).
Os espaços de lazer que traz à memória, eram cinemas dos anos trinta, e encontraremos
na internet este folheto do programa do Royal.
Prosseguindo rua acima, constataremos que até chegar à escola, José, ainda só
Saramago pela iniciativa de um funcionário do Registo Civil, fazia diariamente um longo
caminho. Mas os tempos não eram de contemplações, nem as crianças eram poupadas às
agruras da vida e dos percursos.
Em que pensaria ele, enquanto caminhava ?
Contornado o Largo da Graça, muito menos popular e pitoresco, encontraremos a
sinuosa rua da Verónica onde fica a atual escola secundária Gil Vicente (antigo Liceu).
Um placard comemorativo, revela-nos que tem mais de cem anos de existência. É agora
um amplo e arejado edifício, com imponente frontaria e correspondente escadaria, rodeado de
extensos pátios para recreio. Percebemos que José frequentou outras instalações que não
aquelas. Frequentou as antigas instalações nos claustros do Mosteiro de S. Vicente de Fora que
fica muito próximo, já a rondar o terreiro da Feira da Ladra.
Poderemos prolongar o nosso passeio, empolgados por essa suma poesia – a do reviver
da infância, mesmo através de outrem, deixando-nos levar pela criança que fomos.
Lidas As Pequenas Memórias, a primeira sensação que guardei, foi a de me ter sido
revelado muito e ao mesmo tempo muito pouco. Abalada pelo despojamento total que
trespassa das suas revelações, compreendi que há que ser grande para que nada daquilo que os
outros pensem de nós, nos perturbe as convicções e os ideais.
Terá sido, certamente, esta sua capacidade de despojamento que lhe permitiu viver a
sua vida em suprema liberdade (como homem e como escritor).
É pois, despido de tudo, a nu e a cru, que se nos apresenta. Escrevendo pequenas
lembranças, preparando-se para partir, tal como chegou: pobre, simples, despido de todos os
artifícios, de todos os títulos. De todos os prémios.
Outra virtude encontro neste livro: a do condão de nos aproximar a todos como
herdeiros de um passado português, nem sempre feliz, muitas vezes pobre e duro, por vezes
amargo, mas intrinsecamente nosso. E, aqui, nesta partilha do seu passado como menino e
como jovem, encontro os elementos fundamentais do seu mundo literário como escritor : a
viagem, o crescimento interior, os encontros e desencontros connosco próprios, com os outros
e com o mundo. Elementos fundamentais para também superarmos as mágoas, medos e
desesperanças do tempo absurdo que estamos a viver neste ano de 2020.
Finalizo, transcrevendo um excerto de uma entrevista dada por Saramago em Outubro
de 2008 ao Jornal de Negócios:
“ JN: O que é que mais do que tudo justifica a sua vida? Como é que quer ser recordado?
JS: Se calhar vou pedir o impossível: eu considero-me boa pessoa. Então, que nem a
pessoa que sou apague o escritor que também sou, e que nem o escritor que sou apague a
pessoa que sou. Se calhar é muita sorte alguma destas ficar. Que fiquem as duas, é capaz de ser
impossível. “
Ficaram as duas. Os leitores ficaram a saber de onde saiu o homem que era.
Referências:
SARAMAGO, José – As pequenas memórias. Editorial Caminho, 2006.
Saramago in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2020
Armanda Dias – Professora Bibliotecária da Escola Gaspar Correia